sábado, 30 de janeiro de 2010

Herança



Caros Argonautas,

A partir de hoje, mais uma colunista estreia aqui no Blog do Argônio.
A Grazi Maciel, gaúcha de Porto Alegre, vem para dar mais brilho a este espaço. Divertida, inteligente e sempre criativa, ela pode ser seguida no Twitter pelo codinome @grazicanaam.


O que me ficou de meu pai?

Meu jeito, que é o dele: minha cor em contraste com a minha mãe, com seus olhos claros.
Ficou meu jeito de colocar as mãos na cintura quando tenho que resolver algo rápido, como trocar um móvel de lugar, ou consertar a geladeira. Ficou a salada, não havia refeição sem ela. Ficou meu horror ao cigarro e a mentira, e minha pouca resistência à bebida. Ficou meu gosto pelos livros, mas confesso que no início preferia os gibis. Ficou o gosto por escrever, ah esse eu tenho dele. Ele foi poeta quando moço, devorava sua sede cultura, se sentia mais realizado lendo um livro. Talvez ali buscasse tudo que sonhara ser.

Eu não sou médica, não sou advogada, nem professora. Sou uma pequena célula, perto do que ele foi. Pois ele sempre foi muita coisa. Ele foi justo e injusto, foi amoroso e rude, foi o pai mais babão e o mais rigoroso. Ensinou-me a andar de bicicleta, me viu cair, me viu levantar e em nenhum momento me julgou.

Ele se foi cedo demais. E agora o que ficou? O conselho que não posso pedir. As brigas que a gente não vai ter. Nas brigas das quais a gente iria se unir contra alguém, sei lá quando eu teria razão ou minha irmã. Ou ele sempre com seu olhar afetuoso sobre minha mãe. Ele a amava tanto. E se pareciam tanto de tanto que eram diferentes.

O que ficou dele? Nenhuma imagem gravada. Uma fita cassete que talvez não rode mais. Algumas fotos. Os poemas que escreveu quando moço. É ruim ter que ficar com aquelas imagens mais recentes: magrinho cabelo ralinho, mas completamente culto, ainda o mais sábio dos homens, que mesmo nas tardes de visita no Hospital, ele sabia mais notícias do que qualquer um.
Só não gosto de falar nos últimos três meses desde a doença dele. Tudo o que viveu, tão dependente, tão frágil, indefeso, era o oposto de quem ele foi quando sadio. Meu pai ria, brincava, gritava. Meu pai era cheio de vida e virou um bebê grande, de quem a família cuidou com todo carinho e respeito. Respeito, porque mesmo em cima de uma cama, mesmo com muita dor, ele ainda era o pai, o marido, o dono da casa. De voz forte, alta, tomando café pequeno e dando sustos na gente. Menino grande meu pai. Menino grande, que morreu de repente, sem envelhecer. Menino grande meu pai, de quem lembro o tempo todo, parece que vejo ainda com as bolinhas de gude na mão me ensinando a jogar com aquela paciência infinita. Menino grande, de coração grande, capaz de muito amor, muita tristeza, muita alegria muito segredo. Menino grande de quem eu lembro o tempo todo, e por quem eu chorei pouco, se compara o choro à saudade entalada na garganta.

Grazi Maciel

15 comentários:

  1. Uma linda postagem...daquelas que a gente devora cada palavra...
    só pelo texto se percebe o homem que ele foi.
    Bjs

    ResponderExcluir
  2. Bom texto, Grazi.
    Tem realmente muita emoção nele.
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Nossa, começou bem hein? Lindo texto - emocionado e emocionante. É triste,mas a vida é assim. Das pessoas só sobram as lembranças que elas deixam em quem as ama.

    Seja bem vinda

    beijo rouge

    Dani

    ResponderExcluir
  4. OLá,Grazy1
    Seja bem vida!
    Emocionou-me demais da conta!
    Lembrei-me da minha relação com meu pai e de como eu o perdi.
    Sensível e belo!
    Parabéns!

    Carol Sakurá(@carolbless)
    http://lepoeteenfleur.blogspot.com

    ResponderExcluir
  5. Boa Sorte nesse seu novo espaço. Texto lindo!!

    Abraços

    ResponderExcluir
  6. esse blog era muito simpático... agora está ficando genial. eia!!

    ResponderExcluir
  7. Bem vinda aqui, mas penso que mesmo sendo um momento triste da tua vida, penso que o teu pai tenha te dado uma dadiva ao fim, pois literalmente ele afirmou que mesmo tendo tanto conhecimento, ele não seria nada sem a família.

    Fique com Deus, menina Grazi Maciel.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  8. Muito bem-vinda, Grazi! Aqui é um belo espaço.

    ResponderExcluir
  9. Olha que coincidência, li (e fui às lágrimas) exatamente no dia do aniversário do meu pai.

    A coincidência é que ele sofre de mal de Parkinson, já foi saudável e está indo embora aos pouquinhos.

    E a cada dia que passa eu tento aproveitar da companhia enquanto ele tá aqui conosco.

    ResponderExcluir
  10. Querido Dudo,

    Feliz Aniversário pro teu pai, e Parabéns por você ser este filho Maravilhoso.

    Na verdade como o Leo colocou lá em cima, somos "Heranças" e este é o nosso papel aqui.

    Por tanto, aproveite esse teu Menino Grande ai, e diga todos os dias o quanto o ama, é disso que somos e pra isso que existimos somente pelo AMOR !

    Beijo!
    Obrigada pela visita!

    ResponderExcluir
  11. Linda estréia Grazi.

    Em cada palavra, perfeição. Dá pra sentir quando as coisas sao escritas com amor. Fica palpável.

    Parabéns pelo talento.

    ResponderExcluir
  12. Ainda bem que tanta coisa ficou. Tem coisas que NUNCA morrem. A gente só entende que um parte fica conosco quando uma grande parte vai embora.

    Estamos juntas, amiga!
    =*

    ResponderExcluir
  13. ah, grazi, sempre pegando a gente de calça curta. lindo texto.

    ResponderExcluir
  14. Grazi,

    Lindo texto menina, listas palavras. Emocionei.Parabéns.

    Abraços

    ResponderExcluir
  15. Lindo texto!

    Acabei de escrever sobre meu pai no meu blog tb...tive receio mas expus...me identifiquei mto com teu texto. Parabéns!

    Roberta

    ResponderExcluir